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Os espaços não existem: somos nós que os criamos. O universo é cego às suas próprias medidas, às suas dimensões, à sua velocidade e à sua duração, e, tal como a definição de divindade de Pascal (já inventada pelos filósofos medievais), o universo é uma esfera cujo centro está em toda a parte e cuja circunferência está em parte nenhuma. Nós, seres humanos, porém, carregamos em nós o nosso centro e, do nosso recanto poeirento, dirigimo-nos ao universo e dizemos: «Tu giras à minha volta». Bairro, cidade, região, pátria, continente, são invenções nossas, necessárias como o unicórnio e o basilisco. A imensidão daquilo a que chamamos espaço exterior também é uma invenção nossa.

Um dia, no outono de 1979, José Saramago, então com 57 anos, entrou em Portugal, vindo de Espanha, bordejando o rio Douro. Ali (segundo ele nos diz, mas poderemos nós acreditar em alguém cujo ofício é contar mentiras?) parou o carro na linha de fronteira, metade do veículo em Portugal e metade em Espanha, e pregou um sermão aos peixes. Como nos diz na introdução à edição inglesa do seu livro de viagens, teve como ilustres predecessores Santo António de Pádua (ou melhor, de Lisboa) e o Padre António Vieira. Dirigindo-se aos peixes do rio Douro, Saramago declamou (para estupefação do guarda de fronteira que assistiu à cerimónia):

Que de terra em terra deverei dar muita atenção ao que for igual e ao que for diferente, embora ressalvando, como humano é, e entre vós igualmente se pratica, as preferências e as simpatias deste viajante, que não está ligado a obrigações de amor universal.

Saramago imaginou-se a rezar por um guia ético da atenção do viajante; na verdade, como sabem os seus leitores, o autor estabelecia as suas regras para fazer literatura, e as duas «terras» a que se referia eram, não só os dois países da Península, mas também os territórios do facto e da ficção. Em nenhum dos dois o escritor deve estar «ligado a obrigações de amor universal». Logo no início do seu discurso de aceitação do Prémio Nobel, em 1998, Saramago tornou claro este seu credo pessoal: «A personagem foi mestre e o autor, seu aprendiz.» Em vários dos seus melhores romances, especialmente no extraordinário O Ano da Morte de Ricardo Reis, este discernimento serviu bem Saramago.

A personagem ficcional precisa de ter «obrigações de amor universal», mesmo que não as cumpra para alcançar os seus fins. O escritor não tem de se ater a nenhuma: submete-se obsequiosamente ao ethos da personagem.

Não quer isto dizer que Saramago carecesse do que, à falta de melhor palavra, chamamos empatia. Os seus livros são prova do seu apego (mesmo que crítico) à raça humana. Como a Academia Sueca muito bem sublinhou, as suas «parábolas são escoradas por imaginação, compaixão e ironia», no que respeita às suas personagens, mas também mostram «um ceticismo moderno» sobre as verdades oficiais. A sua fidelidade de uma vida inteira ao Partido Comunista, a que aderiu em 1969 para se opor à ditadura de Salazar, não o cegou para os abusos dos regimes comunistas. Carlos Reis disse que Saramago «viveu o comunismo sobretudo como condição espiritual — filosófica e moral». Estava ciente de que, na nossa época, é mais fácil aderir a críticas acríticas e genéricas do que manter as nossas crenças que recaem sob um rótulo ridicularizado. Saramago teria concordado com a queixa de Karl Marx, que Engels cita em A Origem da Família: «Casuística inata nos homens, a de mudar as coisas mudando-lhes os nomes!»

Mudar o mundo através das palavras faz parte do ofício do escritor, é a única estratégia de que dispõe para chegar às suas personagens. Shakespeare invocou o poder dos bardos irlandeses de «matar ratazanas com rimas». No século VII, o grande poeta irlandês Seanchan Torpest, descobrindo que umas ratazanas lhe tinham comido o jantar, fulminou instantaneamente dez ao declamar um poema que começava: «As ratazanas têm focinhos afilados/ Porém, são fracos soldados.»

O próprio Saramago podia ter imaginado esta demonstração poética do poder da palavra. Seja contra ratazanas ou ditadores, seja contra falsos mitos ou falsas geografias, os escritores podem ocasionar mudança, ou pelo menos fornecer um vocabulário para a mudança. Todas as revoluções começam com uma alteração de vocabulário.

Até às descobertas revolucionárias de Copérnico, imaginámos o universo como um lugar confortável. Instalados no centro de tudo, desfrutávamos dos céus musicais de Platão a circular por cima das nossas cabeças e se, como Luciano ou São Paulo, tivéssemos de viajar para cima ou para baixo, para o Céu ou para o Inferno, fazíamo-lo com a feliz certeza de que pertencíamos ao âmago divinamente escolhido e imóvel em redor do qual o Sol orbitava. Nos bons velhos tempos, viajar pelo espaço exterior não exigia nem tempo nem deslocação física. Como Beatriz lembra a Dante, no reino de Deus tudo é sempre aqui e agora.

Depois, o centro universal mudou. Primeiro, para um subserviente anel do Sistema Solar, depois para um retalho nebuloso de uma galáxia menor, e finalmente para um recanto longínquo do universo em expansão. Embora ainda sentíssemos que tudo girava à nossa volta, compreendemos que a Terra em que nos encontramos é a Sibéria do Cosmos. Essa constatação não diminuiu o nosso desejo de viajar. «Toda a gente na Sibéria se quer ir embora», disse certa vez Joseph Brodsky. Talvez nem toda a gente na Terra sonhe em ir embora, como tantos ucranianos farão agora, mas repetidamente, ao longo das gerações, imaginámos maneiras de nos aventurarmos no que está além, para lá das constelações, na escuridão desconhecida, só para ver como é, traçando constelações feitas com os nossos grãos de experiência. Neste sentido, e na senda dos grandes exploradores portugueses, Saramago é um dos mais entusiastas cartógrafos da literatura.

Em A Jangada de Pedra, Saramago exclama: «Meu Deus, meu Deus, como todas as coisas deste mundo estão entre si ligadas, e nós a julgarmos que cortamos ou atamos quando queremos, por nossa única vontade, esse é o maior dos erros, e tantas lições nos têm sido dadas em contrário, um risco no chão, um bando de estorninhos, uma pedra atirada ao mar, um pé-de-meia de lã azul, se a cegos mostramos, se a gente endurecida e surda pregoamos.» O escritor é sempre Cassandra mapeando um deserto onde clamar, e o leitor é sempre Édipo culpado do crime que tenta deslindar.

Mas a expressão «para ver como é» pode ser tomada como mote de todos os grandes escritores: Shakespeare, que se interroga sobre a casca de noz do mundo que imagina como «espaço infinito», inventa Hamlet «para ver como é». Camões, temendo que o mundo seja um espaço infinito e desejando experimentar a proteção da casca de noz de uma nau, inventa Vasco da Gama «para ver como é». Inventar a geografia do nosso mundo para compreender o mundo não é um passatempo do sonhador: é a árdua obrigação de qualquer artesão das palavras sério, e está na essência da indagação estética.

Porém, será a criação de histórias «para ver como é» uma impostura, mera imitação da vida, uma falsificação? A propósito de falsificações na arte, Umberto Eco perguntou: «Que requisitos deve um original cumprir para ser definido como tal?» O que é que existe no original per se, na sua essência, o que é que existe nas qualidades que se lhe atribuem? Por que meios é que uma pintura de Vermeer que, afinal, foi falsificada pelo artista holandês, e colaborador nazi, Han van Meegeren se transforma aos olhos do observador? Como é que o verso «eu sou do tamanho do que vejo» muda quando descobrimos que o seu autor não é um poeta talentoso chamado Alberto Caeiro, mas um poeta talentoso chamado Fernando Pessoa? O que muda nas palavras, na música, na sintaxe do poema? Nas cores, nas formas, na mestria da pintura? Não será aquilo que nós, enquanto observadores ou leitores, levamos para a obra de arte a causar a alteração da obra ou até a própria obra? Não são essas transformações externas à obra?

Em Pierre Menard, Autor do ‘Quixote’, seu famoso conto de 1939, Borges pergunta: «Atribuir a Louis-Ferdinand Céline ou a James Joyce a ‘Imitação de Cristo’ não é renovação suficiente dos ténues conselhos espirituais dessa obra?» Como se lembrarão, Pierre Menard, Autor do ‘Quixote’ é uma biografia «falsa» disfarçada de ensaio académico em que Borges imagina um escritor francês do século XX, Pierre Menard, que se propõe escrever, de novo, Dom Quixote. Menard não quer compor outro Quixote, nem transcrevê-lo ou copiar o original, mas criar novamente, num novo tempo e num novo lugar, palavra por palavra, o mesmo romance que aquele escrito por Cervantes. É também este, até certo ponto, o método de Saramago em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, A Viagem do Elefante, História do Cerco de Lisboa, Memorial do Convento, e, acima de tudo, na sua obra-prima, O Ano da Morte de Ricardo Reis, em que Ricardo Reis, essa invenção de Pessoa, se torna mais real do que o próprio Pessoa. «Porque é que os factos têm o exclusivo da invenção?», parece Saramago perguntar. «Porque é que uma notícia de jornal está autorizada a ditar-nos o que devemos entender por ‘realidade’, e um poema de Antero de Quental ou os devaneios de Almeida Garrett, em viagem, não estão?»

«Os historiadores», diz Cervantes na Primeira Parte de Dom Quixote, «devem ser exatos, verdadeiros e não movidos por paixões, e que nem o interesse nem o medo, o rancor ou a simpatia os façam desviar do caminho da verdade, cuja mãe é a história émula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso para o presente, advertência para o futuro». Este parágrafo foi o exemplo escolhido por Borges para mostrar como diferentes leitores criam, através das suas leituras, diferentes histórias. Borges cita a seguir a última parte do parágrafo anterior, e compara a versão de Menard ao parágrafo original; as palavras são, evidentemente, as mesmas. O parágrafo de Cervantes, contudo, segundo Borges, é um mero elogio retórico da história. Menard, em contrapartida, escreve um texto espantoso: a história, escreve Menard, é a mãe da verdade. «Menard», diz Borges, «contemporâneo de William James, não define a história como uma investigação da realidade mas como a sua origem. A verdade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que nós acreditamos que aconteceu». Isto, no que toca a Saramago, é essencial.

Como o Menard de Borges compreendeu, a atribuição implica a interpretação. E, portanto, Saramago não assume inteira autoria das suas ficções. Mesmo no final de A Jangada de Pedra, diz, com generosidade, que a história de Roque Lozano, «alguém há de querer contá-la um dia». Não necessariamente o autor.

Para Roland Barthes, «atribuir um autor a um texto é impor um limite a esse texto». Menard e Saramago não diriam melhor. As palavras de Cervantes escritas no século XVI têm um significado diferente do das mesmas palavras escritas por um contemporâneo de Monsieur Teste, no século XX. E, em ambos os casos, pode haver não uma, mas várias leituras. No século XIII, os estudantes medievais recitavam esta cantilena mnemónica composta pelo clérigo dinamarquês Agostinho de Dácia: «Littera gesta docet, quid credas allegoria,/ moralia quid agas, quo tendas, anagogia. [A letra ensina-te os factos (passados), a alegoria o que deves crer, a moral o que deves fazer, a anagogia para onde deves tender]».

Dante repete a ideia, na sua Epistola a Cangrande, tentando explicar as várias leituras possíveis da sua Comédia: «Devo precisar que o significado desta obra não é único, antes se pode chamar polissémico, isto é, de muitos significados; o primeiro é o que vem da letra, o segundo é o que se quis significar com a letra. Ao primeiro chamamos literal; ao segundo, alegórico, moral ou anagógico». As ficções de Saramago operam nos dois níveis em simultâneo: o literal é alegórico e o alegórico deve ser tomado à letra.

Uma das mais poderosas fábulas da mudança é o já mencionado romance A Jangada de Pedra. Como se lembram, o romance conta como a Península Ibérica se desprende da Europa e flutua para longe, até encontrar o seu lugar em pleno oceano, entre a América do Sul e África, dando um sentido inesperado e subversivo ao dito de Luís XIV aquando da subida do seu neto ao trono espanhol: «Os Pirenéus deixaram de existir». A Europa ficou truncada. «Portugal embrechado, suspenso, Espanha desmandibulada a sul, e as regiões, as províncias, os distritos, o grosso cascalho das cidades maiores, a poalha das vilas e aldeias, mas nem todas, que muitas vezes é invisível o pó a olho nu…»  O verdadeiro é amiúde invisível aos olhos da carne. «A península desce para o sul deixando atrás de si um rasto de mortes de que está inocente, enquanto no ventre das suas mulheres vão crescendo aqueles milhões de crianças que inocentemente gerou». Como Auden disse após a Segunda Guerra Mundial: «A história, aos derrotados, pode dizer ‘Ai!’, mas não pode ajudar nem perdoar».

Saramago sabia certamente que, na descrição que Dante faz da Queda de Lúcifer, quando os mais belos anjos de Deus caíram para a Terra, Lúcifer ficou preso a meio caminho, com as suas três caras e o torso no gelo setentrional do abismo do Inferno, e as suas hediondas pernas peludas apontadas ao hemisfério sul. As terras do sul, horrorizadas pela traição de Lúcifer, retiraram para norte, deixando o reino aquoso do hemisfério sul um «mondo senza gente». Será para essas paragens que derivará a jangada de pedra, abandonando o falacioso norte e encontrando a sua identidade entre a América do Sul e o continente africano.

Se Saramago acreditava numa Europa unida, era como coisa a desejar apenas quando as condições presentes se alterarem. Tal como está, a ideia de «integração europeia» era, para Saramago, uma «falácia de mau gosto» porque, «não pode haver união genuína quando há países que mandam e países que obedecem». E acrescentou: «Em primeiro lugar sou português, depois sou ibérico, e em terceiro lugar, se me apetecer, sou europeu». Admitia essa dupla identidade, como admitia a dupla geografia que explorou em Viagem a Portugal.

Era óbvio que Saramago gostava de rescrever velhas histórias. Fosse uma versão diferente da Paixão de Cristo (O Evangelho Segundo Jesus Cristo), fosse outra descrição de uma peste universal (Ensaio Sobre a Cegueira, escrito um quarto de século antes da covid), Saramago encontrava nessas narrativas primordiais alimento para a sua obra ficcional. Uma dessas histórias já sobejamente contadas é a lenda do Doppelgänger. Tão velha como os nossos medos, a figura familiar do duplo assombra as literaturas de todos os países. Existe em todas as formas e tamanhos, desde o pernicioso outro que castiga o herói teimoso (como no conto William Wilson, de Poe) à aparição benevolente que sabiamente confronta o seu próprio reflexo para lhe dar uma lição (como no conto 25 de Agosto de 1983, de Borges).

Em O Homem Duplicado, Saramago conta a história do professor de nome pomposo Tertuliano Máximo Afonso, que, certo dia, enquanto vê um vídeo banal recomendado por um colega, descobre que um dos atores secundários é seu gémeo idêntico, embora mais jovem. Tertuliano fica obcecado com a ideia de conhecer a pessoa que toma como seu duplo e, depois de ver dezenas de outros filmes, consegue saber o nome do ator e descobrir-lhe o paradeiro. Por fim, o protagonista e o seu reflexo encontram-se. Dado que as imutáveis leis da natureza ditam que uma coisa não pode existir em dois lugares ao mesmo tempo, um homem e o seu duplo não podem ambos ficar vivos: um dos dois tem de desaparecer para que a ordem do universo seja mantida. Não será imperdoável revelar que, inevitavelmente, o romance acaba com uma morte.

A geografia de Saramago precisa de ser constantemente reinventada. Tal como precisa o tempo. Refletindo com olhar omnisciente sobre os seus deveres de romancista, Saramago confessa em A Jangada de Pedra: «A viagem não teve história, é o que sempre dizem os narradores apressados quando julgam poder convencer-nos de que nos dez minutos ou dez horas que vão fazer sumir nada sucedeu que merecesse menção assinalável». O tempo é o tempo da narração, que Santo Agostinho associava à paisagem da memória, que se torna cada vez mais vasta à medida que a geografia da página se torna cada vez mais estreita, com o aproximar das últimas palavras do livro.

É este o paradoxo da arte da literatura: o nosso mundo terreno é terrível, mas capaz de se definir a si e aos seus limites, e, ao fazê-lo, enquadra tudo o que fica além dele, permitindo-nos, seus sonolentos habitantes, discernir aquilo que talvez queiramos alcançar, seja o pico de uma montanha no horizonte ou as cose belle, «as cousas belas», como Dante lhes chama, no insondável Cosmos por cima de nós. Mas, uma vez saídos desse mundo (ou da «selva escura», ou do continente a que chamamos Europa), uma vez no espaço onde constelações nascem e galáxias morrem, onde há ilhas de gelo à deriva e nações agonizam, entramos num território sem fronteiras. Tudo ali está simultaneamente constrito e em expansão, um universo finito (dizem-nos os cientistas) mas sem limites concebíveis. Nesse além, queremos sair do nosso familiar «aqui», para um lugar onde os sonhos de astrofísicos e teólogos e escritores como Saramago se combinam numa feliz fraternidade. Nesse além (como na Lua de Ariosto) estão todas as coisas que perdemos ou julgamos ter perdido: a confiança na sabedoria, a hipótese de felicidade, a esperança num futuro melhor. Aqui em baixo vivemos.

Texto de Alberto Manguel para as Conferências do Nobel – iniciativa da Fundação Saramago e da Câmara Municipal de Lisboa [Tradução de inglês de Rita Simões]